terça-feira, 30 de setembro de 2014

Educar por Inteiro - Cap. 10: Educação para a Ética e os Valores Humanos


Capítulo  10
Educação para a Ética e os Valores Humanos
Educar para o Bem
Os maiores sofrimentos e catástrofes experimentados pela humanidade não foram obra de pessoas ignorantes ou incapazes. Os maiores males nasceram nas mentes de indivíduos extremamente refinados no intelecto e nas capacidades sociais, mas que norteavam suas ações por parâmetros éticos inadequados. Quando uma pessoa má e perversa tem inteligência, conhecimento, educação e habilidades ela pode causar muito mais mal do que alguém simples e ignorante. No século XVI o filósofo francês Michael de Montaigne[i] afirmava: “todo conhecimento é danoso para aquele que não possui a ciência da bondade.”[ii]
Quando uma pessoa não é educada na dimensão ética ela pode vir a ser causa de grande sofrimento para si mesma, sua família, seu grupo social ou mesmo para a humanidade em geral. Quando não é equilibrada pela dimensão ética, a educação intelectual pode vir a potencializar o mal que é praticado.
A vida de uma pessoa vale por aquilo que ela faz de bom no mundo. Como diz o ditado, “Da vida, só se leva o que se dá!”. Como já vimos em capítulos anteriores, nenhuma criança nasce má. Não existe uma “índole má” na natureza humana. O mau comportamento, especialmente aquele que provoca sofrimento aos outros, provém de uma educação inadequada, principalmente nas esferas emocional e disciplinar e especialmente no que diz respeito à ética e aos valores humanos. Portanto, acima de tudo a educação deve procurar conduzir as crianças, jovens e adultos aos caminhos do bem. Isso significa inculcar no coração e na mente das crianças uma série de princípios nobres que lhes possam servir de guia e parâmetro para suas decisões e ações no mundo.
É importante ressaltar que essa transmissão de princípios e modelos éticos não se dá meramente pela transmissão de lições morais ou pela exortação para o bem, embora isso faça parte. O mais fundamental é o ambiente de amor, aceitação, encorajamento, apoio e bondade no qual a criança se desenvolve e é educada. O mau comportamento, a perversidade e a maldade sádica são muito mais frutos da falta de amor, de aconchego emocional e de disciplina amorosa na infância, do que da carência de exortações, reprimendas e castigos. A educação ética nasce principalmente no amor, no aconchego e no exemplo.
Uma História para Começar
            Uma história oriental conta o seguinte:
Era uma vez um rei muito poderoso, senhor de um imenso domínio de terras e gentes. Ninguém no mundo podia se comparar a ele em riqueza e autoridade. Além disso, o poderoso monarca possuía inteligência e sagacidade incomuns, vontade e determinação férreas e um refinado senso estético. Porém, era extremamente materialista, injusto e cruel. Cobria seus “escolhidos” com favores extremos e perseguia e humilhava seus desafetos. Por causa disso, era tremendamente temido por todos, o que, para ele, era razão de orgulho e prazer.
Certa vez o rei ouviu falar de um homem muito santo que vivia num local afastado do reino. Diziam os relatos que ele não era um santo comum, mas um santo perfeito. Tão perfeito que Deus atendia todas as suas preces e orações. Havia histórias de incontáveis milagres, curas impossíveis e até de ressurreição de mortos. O rei ficou muito intrigado e mandou buscar o santo para o castelo.
Uma vez em sua presença o rei falou:
─ É verdade que Deus atende todas as suas súplicas e preces?
─ Deus faz o que deseja, majestade ─ respondeu o santo ─, mas tem sido generoso comigo.
─ Assim sendo, qualquer coisa que você pedir tornar-se-á realidade?
─ Tem sido sempre assim, majestade ─ afirmou o santo.
─ Neste caso ─ disse o rei ─ ordeno a você que peça a Deus o melhor possível para mim e para meu reino. E que isso se cumpra logo.
O santo fechou os olhos e, após alguns minutos de silêncio, orou. O rei esperava que ele pedisse por saúde, riqueza, fama, poder, vitória, etc. Em vez disso, a voz do santo ecoou pelos salões e corredores do palácio dizendo:
─ Ó meu Deus, ó meu Deus. Embora eu seja indigno de Tuas graças e favores e apesar de minha absoluta falta de mérito ante Tua face, eu Te suplico que apresses para o quanto antes a morte deste soberano que impera sobre nós.
Ao ouvir estas palavras, o rei ergueu-se apavorado e cheio de ódio. Dirigindo-se ao santo, esbravejou:
─ O que é isso? Que loucura é essa? Eu te ordenei que fizesses a melhor súplica possível por mim e pelo meu reino e tu pediste pela minha morte? O que te levou a essa loucura?
─ Majestade ─ respondeu serenamente o santo ─ esta foi sem dúvida a melhor prece que eu poderia oferecer por Vossa Majestade e vosso império. Os pecados que Vossa Majestade acumula a cada instante ─ com luxúria, cobiça, traição, preguiça, gula e ira ─ aumentam sem cessar vossa culpa e vosso castigo no mundo do além, onde todos nós passaremos a eternidade. Assim, quanto antes vossa vida acabar, melhor será para Vossa Majestade, pois menos pecados vossa alma terá de penar no arrependimento eterno. Por outro lado, a cada dia que passa, vosso povo sofre uma nova guerra, uma nova injustiça, uma nova crueldade e um novo sofrimento provenientes de vossas mãos. Assim, vossa morte é também o que melhor pode acontecer para todos os vossos súditos. Nenhuma prece minha poderia alterar a vossa conduta, pois o livre-arbítrio, por ser uma das grandes leis de Deus, não pode ser alterado por nenhuma oração. Eis as razões de esta ser a melhor prece que vos poderia conceder.
É claro que esta história não pode ser tomada ao pé-da-letra, nem precisamos concordar com todas as implicações do que ela conta. Mas, dentro da grande tradição das fábulas e contos com objetivos morais, ela toca pontos importantes para o que estamos investigando. Ela ressalta que a grandeza da vida de um ser humano não está nas suas posses ou na sua riqueza. Nem mesmo está em sua inteligência, grau e instrução ou refinamento cultural. A grandeza da vida de uma pessoa depende de ela ser uma fonte de bem para os que vivem ao seu redor.
A Ética Precisa ser Ensinada
Na visão de um dos gigantes da Filosofia Ocidental, Aristóteles, e que é compartilhada pela grande maioria dos pensadores e filósofos que ponderaram sobre os desafios da educação, a felicidade humana depende do desenvolvimento de virtudes. “Reconheçamos, pois,” – diz Aristóteles – “que cada um desfruta apenas de tanta felicidade quanto possuir de virtude e sabedoria, e de ação virtuosa e sábia.”[iii]
Aristóteles distingue dois tipos de virtudes: intelectuais e morais[iv]. Sua classificação de virtudes intelectuais incorpora aquilo que, ao longo dos séculos, veio a ser definido como raciocínio, imaginação, compreensão e memória, ou seja, as capacidades cognitivas em geral. Por outro lado, as virtudes morais englobam qualidades de caráter, como temperança, justiça, amor e veracidade.
Ele observa então, que “a virtude intelectual, no geral, deve seu nascimento e desenvolvimento ao ensino (razão pela qual necessita experiência e tempo), enquanto a virtude moral nasce como resultado do hábito... Disso se torna claro, também, que nenhuma das virtudes morais se desenvolve em nós de forma espontânea.”[v]
Assim, fica claro que o bom caráter precisa ser ensinado pela aquisição de bons hábitos. E mais: a aquisição de qualidades morais e éticas, de virtudes e de valores humanos não se dá apenas através da educação intelectual, pelo domínio das ciências e das artes. A educação ética precisa ser especialmente enfocada e nutrida para que se desenvolva. Ela necessita de abordagens e metodologias próprias e de um clima emocional onde se alcance e nutra a sensibilidade da alma, e não apenas do intelecto.
As Bases das Ações Humanas




A qualidade de tudo aquilo que fazemos no mundo ─ a qualidade de nossas ações ─ seja na vida profissional, familiar ou social depende basicamente de quatro conjuntos de fatores:
·      Conhecimentos
·      Habilidades
·      Atitudes
·      Qualidades, valores e virtudes
Os conhecimentos dizem respeito àquelas coisas que precisam ser sabidas para que uma determinada ação possa ser realizada, desde encerar o assoalho, arrumar o motor de um carro, resolver uma equação matemática, harmonizar um grupo de trabalho, estabelecer a paz entre nações em guerra ou fazer um foguete ir à Lua e voltar.
Também precisamos de habilidades ou destrezas específicas para cada realização ou atividade. As habilidades não deixam de ser a capacidade de colocar os conhecimentos em ação. Têm a ver com a prática, a operacionalização dos conhecimentos.
Da mesma forma, a qualidade de nossas ações depende grandemente da atitude com a qual executamos a tarefa. As atitudes são assim como o tempero das ações. Uma ação executada com má-vontade, irritação, preguiça, desatenção ou desleixo é bem diferente de uma realizada com boa-vontade, empenho, cuidado e excelência. E quem contempla duas pessoas com atitudes diferentes realizando a mesma coisa, sabe muito bem distinguir qual a atitude que domina cada uma delas.
Finalmente, a qualidade de uma ação ou realização depende imensamente do conjunto de qualidades éticas e morais, dos valores humanos e das virtudes pessoais e coletivas nas quais está baseada. Quando as ações não estão baseadas em princípios éticos universais e atemporais como a Verdade, a Justiça e o Amor, então há uma grande chance de que elas sejam danosas. Uma pessoa pode ter grandes capacidades em termos de conhecimentos, habilidades e atitudes, mas, se for desprovida de um referencial ético poderoso, suas ações tenderão ao desastre.
Tomemos um exemplo extremo para perceber isso com mais clareza, pois geralmente tais temas somente ficam claros quando explorados nos limites. Vejamos o caso de Hitler:
·      Hitler não era um homem ignorante. Ele não chegou ao cargo de chanceler supremo de uma das nações mais eruditas do planeta através de um golpe de estado, mas pela força das urnas. Ele tinha grande conhecimento, não somente da realidade econômica, política e social da Alemanha de então, mas também da Europa como um todo. Além disso, era um estudioso das Artes em geral, além de ser pintor e escritor.
·      Hitler não era um homem inábil. Pelo contrário: ele tinha grandes habilidades sociais, políticas e de comunicação. Sabia fazer alianças, sabia construir visões de felicidade e prosperidade e transmiti-las às massas de forma extremamente contagiante e convincente, sabia mobilizar as massas de uma forma genial.
·      Hitler tinha em excelência todas as atitudes necessárias para sair-se bem em suas empreitadas: capacidade de decisão, otimismo, perseverança, atitude de aprendizado, paciência, coragem, ânimo, etc.
·      Porém, no que diz respeito aos valores humanos e princípios éticos e espirituais, Hitler foi contra tudo o que hoje prega a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e aquilo que as grandes tradições espirituais consideram sagrado há milênios.
Todos os excelentes conhecimentos, as excelentes habilidades e as excelentes atitudes de Hitler serviram apenas para provocar o Holocausto: o assassinato em massa de mais de cinco milhões de homens, mulheres e crianças durante os breves anos da Segunda Grande Guerra. Isto porque no que diz respeito ao Amor Universal (ausência de preconceitos), à Bondade e à Justiça suas ações eram corrompidas e maléficas.
O mesmo se dá com todos os indivíduos ou grupos sociais dotados de muita capacidade mas privados de ideais éticos e morais nobres: a destruição e o mal que produzem é imenso. Melhor seria que tivessem permanecido ignorantes, incapazes de promover o dano que causaram. Se Hitler tivesse sido apenas um camponês analfabeto, inculto e incapaz, ele não teria causado o mal que causou.
Exercícios:
1.     Comentem em conjunto a frase de Montaigne: “todo conhecimento é danoso para aquele que não possui a ciência da bondade.”:
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2.     As pessoas já nascem com bom ou mau caráter?
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3.     O texto afirma que “a educação ética nasce principalmente no amor, no aconchego e no exemplo.” O que você pensa disso?
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4.     Quais são os quatro elementos dos quais depende a qualidade de nossas ações?
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5.     Comente em grupo sobre exemplos de pessoas humildes e sem instrução que são fonte de bem e de benefício social, e de pessoas instruídas cujas ações são prejudiciais à sociedade.
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Notas e Bibliografia


[i] Pronuncia-se “Michel de Montein”.
[ii] Montaigne. Apud. The Great Ideas, a Syntopicon of Great Books of the Western World, bk 2, p.379
[iii] Aristóteles. Politics, bk VII: 1, [20]
[iv] Id. Ethics, bk II: 1, [15]
[v] Id. Ibid., bk II: 1, [15]. A ênfase é nossa.

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